Vieux Farka Touré

<font color=0094E0>«Vejo-me como um mensageiro, canto a sociedade»</font>

Vieux Farka Touré é um dos nomes cimeiros no cartaz dos espectáculos da Festa do Avante! Virtuoso guitarrista, compositor e letrista, Vieux é um daqueles casos raros de sucesso imediato. A sua carreira musical ainda mal começou e já é aclamado pelo público e pela imprensa especializada como uma das grandes figuras da música do Mali. Em Lisboa, onde esteve durante a semana passada para descansar e preparar o seu próximo disco, fomos encontrá-lo na casa da sua agente, num apartamento junto à Feira da Ladra com uma esplendorosa e inspiradora vista sobre o Tejo.
Apesar de todos lhe cha­marem Vieux (velho, em francês), Farka Touré é um jovem de 26 anos. Porque lhe chamam «velho» e não o seu nome de bap­tismo, Bou­réima?

Sim, chamo-me Bouréima que era também o nome do meu avô paterno. No Mali, quando uma criança recebe o nome do seu avô, é costume ser tratada por Vieux (velho), o que é um sinal de respeito. É essa a explicação do meu nome.

O seu pai, Ali Farka Touré, fa­le­cido em Março de 2006, foi um dos grandes nomes do blues afri­cano do sé­culo XX, tendo de­di­cado toda a sua vida à mú­sica. No en­tanto, proibiu-o a si de se­guir a car­reira mu­sical. Porquê e como o con­venceu a mudar de opi­nião?

O pai passou momentos muito difíceis no início da sua carreira e não desejava que o seu filho passasse pelo mesmo. Quando começou a tocar na Europa foi explorado por empresários sem escrúpulos que ficavam com o dinheiro dos espectáculos e não lhe davam quase nada. Por isso, queria que eu seguisse a carreira militar, mais estável e onde o salário está garantido ao fim do mês. Mas eu não gostava do exército, nem das coisas da guerra e falei com os amigos dele para que o convencessem a mudar de opinião. Foram precisos vários anos até que finalmente aceitou a minha opção pela música.

Mas você to­cava às es­con­didas. Co­meçou por ex­pe­ri­mentar a gui­tarra do seu pai?

Tocava sem ele saber todo o tipo de percussões, cabaças, tambores, etc., mas não guitarra. Em 1994, com 12 ou 13 anos, entrei para a orquestra de Niafunké como percussionista. Depois em 1999 fui para Kati, que fica a 15 quilómetros da capital Bamako, para ingressar no serviço militar. Mas acabei por me inscrever no Instituto Nacional das Artes, onde fiz o curso de música de quatro anos.

E foi aí que aprendeu a tocar gui­tarra?

Sim, mas só a partir do terceiro ano do curso, ou seja, só comecei a tocar guitarra em 2003. Foi então que o meu pai me ofereceu duas guitarras e passei a tocar o tempo todo, de manhã, à tarde e à noite. Quando acordava durante a noite, pegava na guitarra e tocava. Para além dos professores no instituto, o meu pai e alguns músicos que trabalhavam com ele também me ensinaram a tocar. E eu praticava constantemente ouvindo as gravações de Ali num pequeno rádio-leitor de cassetes e acompanhando com a guitarra. Tudo se pode fazer desde que se goste e se tenha vontade, é o que dizem as pessoas no meu país.
A grande recompensa pelo meu trabalho surgiu logo em 2004, quando o meu pai me convidou para o acompanhar num espectáculo em França. Eu nem queria acreditar, pensei que estivesse a brincar, mas trataram-me do passaporte e dos vistos e partimos. Foi então que subi pela primeira vez ao palco e me vi diante de 15 mil pessoas. Felizmente tudo correu bem, toquei cabaças e guitarra, foi a grande prova.

Julgo que não é fácil para um jovem mú­sico ma­liano lançar-se numa ful­gu­rante car­reira in­ter­na­ci­onal como é o seu caso. Como surgiu o seu pri­meiro disco, o seu pai teve nele um papel im­por­tante?

No disco, os arranjos foram quase todos feitos por mim, toco cabaças, guitarras, canto. É claro que o meu pai teve um papel importante, aprendi muito com ele nos espectáculos, mas acho que também tive muita sorte. Foi tudo muito rápido. Comecei a fazer digressões há apenas dois anos e já toquei em todo o lado, dos Estados Unidos à Europa. Logo com o meu primeiro álbum fiz um contrato nos EUA. Foi Deus que assim quis. Tenho muitas pessoas que me apoiam, a minha agente, Deborah Cowen, faz tudo o que pode para me ajudar. Ela já trabalhava com o meu pai e é muito mais do que a minha ma­nager. É quase como uma mãe. Estamos agora em casa dela a preparar o meu segundo álbum. É por isso que estou em Lisboa. Gosto desta cidade, gosto das colinas, é verdade que cansam a andar, mas abrem-nos os pulmões e cantamos melhor. E há o Tejo que me faz lembrar a minha aldeia que fica na margem do rio Niger. Tenho ensaiado e composto. Levo comigo duas ou três novas canções que fiz aqui.

O seu pai, Ali, foi o cri­ador do cha­mado blues sa­a­riano, es­ta­be­le­cendo uma li­gação que agora nos pa­rece evi­dente entre o blues norte-ame­ri­cano e os ritmos tra­di­ci­o­nais afri­canos, que são as suas ver­da­deiras ori­gens. Dir-se-ia que você segue na es­teira de Ali, no en­tanto no seu disco ouvem-se so­no­ri­dades que per­tencem cla­ra­mente ao uni­verso do rock e do reggae. Con­si­dera-se mesmo assim um mú­sico tra­di­ci­onal do Mali?

Eu considero-me simplesmente um músico. Serei sempre o filho de Ali e a sua música continuará sempre a influenciar-me, mas eu sou um jovem, ouço rock, rap, jazz, música latina, fado…

Fado?!…

Sim. Descobri o fado aqui em Lisboa e gosto muito da forma rápida como tocam as guitarras. Para mim, música é música, não dou importância aos nomes. Um reggae é música antes de mais. E eu faço música não para os malianos ou para europeus, mas para todas as pessoas. Ofereço-lhes aquilo que conheço melhor e faz parte de mim próprio, os ritmos do meu país, o legado do meu pai que são as raízes, a base da minha música, mas não hesito em misturá-los com outros estilos de que gosto.

Ao con­trário de ou­tros mú­sicos afri­canos que se im­pu­seram na cena in­ter­na­ci­onal, você con­tinua a re­sidir do Mali. Porquê?

Se pudesse, regressava já ao Mali. É lá que estão a minha mãe, as minhas irmãs, os meus amigos. Assim que termino uma digressão, o meu desejo é ir para casa, para o Mali. Nunca viverei noutro país. A cultura do Mali é totalmente diferente da Europa. O relacionamento entre as pessoas é muito mais caloroso, as portas das casas estão sempre abertas. Ontem, andei a pé por Lisboa e fui dar a um bairro antigo, com pequenas vielas e pátios. E vi, com surpresa, idosos a jogar às cartas na rua, pessoas a conversar. Aquele ambiente de proximidade, que não se encontra nas cidades europeias, lembrou-me logo o meu pais. E passei três horas a andar por ali às voltas.

O Mali é um dos países mais po­bres do mundo, onde a es­pe­rança de vida não ul­tra­passa os 49 anos e a ma­lária cons­titui uma das prin­ci­pais causas de morte. Essa dura re­a­li­dade, que in­fe­liz­mente é comum à mai­oria dos países afri­canos, trans­pa­rece de al­guma forma na sua mú­sica? Quais são os temas das suas can­ções?

A pobreza é um dos temas do meu trabalho. Falo dela no disco. Na segunda faixa, por exemplo, Dounia, que quer dizer mundo em sonrai [um dos dialectos do Mali], falo na necessidade de ajudarmos os mais desprotegidos. No Mali há muita pobreza, mas também há muitos ricos. O país é pobre mas não é o dinheiro que falta. Basta ver os carros de luxo que circulam nas estradas. Todas as grandes marcas estão lá. Ao mesmo tempo, muitos morrem de paludismo porque não têm um mosquiteiro que os proteja, nem dinheiro para comprar medicamentos contra a malária. Procuro contribuir para socorrer os mais necessitados. Das vendas do meu álbum, dez por cento são doados à Bee Sago, uma organização filiada na UNICEF, que tem como missão distribuir mosquiteiros às crianças e mães grávidas na região de Niafunké, a minha terra natal, no noroeste do Mali.

Os pro­blemas so­ciais con­cen­tram por­tanto a sua atenção. A mú­sica para si não é só en­tre­te­ni­mento, acha que um ar­tista pode cum­prir uma missão so­cial?

Sim. Enquanto músico sinto que tenho uma responsabilidade social. Por isso, as letras das minhas canções estão todas traduzidas em inglês e francês. Quem as ler verá que não sou um cantor de temas de amor. Falo da sociedade e dos seus problemas, da necessidade de mais justiça e de solidariedade. Nesse sentido, vejo-me como um mensageiro, canto a sociedade.

Em Se­tembro vai estar na Festa do «Avante!», que é o maior fes­tival de ca­rácter po­lí­tico e cul­tural que se re­a­liza em Por­tugal, or­ga­ni­zado e cons­truído por mi­li­tantes e sim­pa­ti­zantes co­mu­nistas. Acha que é pos­sível hoje, neste mundo li­beral e glo­ba­li­zado, onde só o lucro pre­va­lece, con­ti­nuar a lutar por uma so­ci­e­dade justa, contra as de­si­gual­dades so­ciais e pelo de­sen­vol­vi­mento e pro­gresso de toda a hu­ma­ni­dade?

Sim, é possível, podemos fazê-lo se lutarmos, se tivermos coragem e vontade para mudarmos as coisas. A minha mensagem é dirigida a cada pessoa individualmente, para que cada um se melhore a si próprio. Haverá sempre problemas, mas podemos mudar a situação. E as coisas irão mudar, mais cedo ou mais tarde.

No seu disco, há uma canção tra­di­ci­onal, Touré de Ni­a­funké, que é de­di­cada a Sa­mory Touré, o úl­timo rei do Im­pério Man­dinga. O ape­lido Touré é de li­nhagem real?

Não. Na verdade inclui essa canção em homenagem ao meu pai. É ele o Touré de Ni­a­funké. [Ali Farka Touré exerceu até aos últimos dias as funções de presidente do município de Niafunké, no Noroeste do Mali]. Ele preocupou-se sempre em ajudar o povo, criar empregos e melhores condições de vida. A sua casa estava aberta a todos, nunca teve guarda-costas, e hoje a fundação com o seu nome prossegue essa obra social.


O pri­meiro álbum

Vieux Farka Touré gravou o seu primeiro álbum, nos Estúdios Bogalan, em Bamako, com Eric Herman, um músico norte-americano que conheceu o jovem talento na sua passagem pelo conservatório do Mali.
Este trabalho conta com a participação em duas faixas de Ali Farka Touré, seu pai e guitarrista de blues saariano mundialmente famoso, e de Toumani Diabeté, célebre tocador de kora (harpa africana), a quem Vieux dedica o último tema instrumental do disco, em sinal de agradecimento pela ajuda que lhe deu no início da carreira. Foi na banda de Diabeté que Vieux deu os primeiros passos nos circuitos internacionais, começando depois a acompanhar o seu pai na guitarra.
Sete canções do álbum, onde se incluem ainda três temas instrumentais, são escritas em três dialectos do Mali (ful­lani, sonrai, bam­bara), mas o autor fez questão de incluir a tradução das letras em francês e inglês. Da sua leitura, transparecem as preocupações do jovem compositor com os problemas da actualidade.
Logo na primeira faixa, Vieux dirige-se aos seus compatriotas espalhados pelo mundo: «Precisamos um dia de regressar ao nosso país (…) onde poderemos ter orgulho em nós próprios (…) ao Mali que é nosso».
Denunciando as desigualdades e injustiças, o tema Dounia realça a importância da solidariedade como uma espécie de programa para a transformação da sociedade: «O mundo não ficará como está/ Para que ele mude, temos de ajudar os outros/ Aqueles que nada têm, os pobres (…) Um franco não é pouco, um milhão não é muito».
Uma condenação da exploração do trabalho surge na canção Ana: «Não queremos mais/ Aqueles que ficam deitados e mandam os outros trabalhar para eles». O tema seguinte (Ma Hine Co­corre), sublinha que «Basta de corrupção/ De injustiça, violência», afirmando-se em Di­allo, que «A verdade não pertence apenas a duas categorias de pessoas/ Os ricos e as celebridades».
Na canção Wo­sou­bour, a sétima do álbum, Vieux exorta: «Lutemos contra a injustiça/As mentiras têm mais valor/ e mais força que a verdade». Exigindo honestidade aos «dirigentes, governos, ricos e gente importante», o cantor aponta aos «pobres e miseráveis» o único caminho possível: «Lutemos»!


Mais artigos de: Em Foco

<font color=0094E0>Palco de intervenção cultural e política</font>

A cinco semanas da abertura da Festa do Avante!, redobram-se os esforços para que nos dias 5, 6 e 7 de Setembro a Quinta da Atalaia abra as portas aos milhares de pessoas que durante três dias participam na maior iniciativa política e cultural do País. No Avan­te­atro ultima-se o programa dos espectáculos que este ano vão do teatro à dança, passando pela música e pelo o cinema documental, fazendo do chapitô da Festa um palco de intervenção política e cultural, revelaram Manuel Mendonça e Pedro Lago em conversa com o Avante!.

<font color=0094E0>Lembrar o passado, afirmar a alternativa</font>

No programa do Avanteatro, incluem-se este ano duas peças que assinalam outros tantos momentos importantes na luta do povo português contra o fascismo, mas que «conservam grande actualidade num contexto em que se tentam cercear liberdades, se assiste a tentativas de branqueamento do fascismo e de todas as suas...

<font color=0094E0>Contributo para a luta</font>

O cinema documental está também em evidência no Avanteatro, este ano com a A água como bem comum, «filme que tem motivado debates muito interessantes sobre o tema dos recursos hídricos e a realidade social e política de intensificação da exploração, de tentativa de privatização da água através da entrada no sector das...

<font color=0094E0>Notas de qualidade</font>

Boa disposição e convívio é quanto basta para que se faça a Festa no bar do Avanteatro, este ano a funcionar num ambiente muito próximo do café-concerto onde sobressaem, sexta-feira, o arranque com um espectáculo de Jazz, e ao qual se seguem nos restantes dois dias, contou Manuel Mendonça, «Mariana Abrunheira, que virá...

<font color=0094E0>Para miúdos e graúdos</font>

Uma das componentes que mais se afirma no Avanteatro e mais adesão tem por parte do público é o teatro infantil. «Este ano, ainda não temos condições para, a par dos espectáculos, realizar oficinas que possibilitem às crianças interagir com os actores, aprenderem e participarem, isto apesar de terem sido realizadas...

<font color=0094E0>«A Festa começa num traço...»</font>

Se para contar uma história é necessária uma boa dose de criatividade e imaginação, ambas são imprescindíveis na construção da nossa Festa, «e os comunistas, os trabalhadores e os amigos que participam na sua implantação colocam-nas ao serviço do Partido», assegura Pedro Lago, que acrescenta que sem tal generosidade «não...